quinta-feira, 30 de outubro de 2014

E se a Madeira fosse independente?

Reportagem publicada na revista "Sábado", em março de 2012, da autoria das jornalistas Maria Henrique Espada e Satras Capelo.

"Portugal vai ter de resolver os problemas dos portugueses do continente e dos portu­gueses da Madeira, porque se há dois países (a Madeira e o continente), então dêem-nos a independência", disse em Setembro Alberto João Jardim, presidente do Governo Regional. A negociação do resgate financeiro de Lisboa à Madeira prolongou-se até esta semana, sempre com a ameaça da secessão. Gabriel Drumond, presidente do Fórum Autonomia da Madeira (Fama), de que jardim é membro, reagiu assim ao prolongar do impasse: "Ou Lisboa toma juízo ou temos de avançar para a separação." Em 2008, a Eurosondagem fez um estudo de opinião para a Rádio Renascença, a SIC e o jornal Expresso em que perguntou aos madeirenses: "A Madeira deve ser independente" O "não" obteve 72,2% das respostas, contra 10% do "sim", o que não impede Alberto João Jardim de usar o argumento independentista como alavanca negocial. Mas, e se um dia fosse verdade?



Seria possível fazer o processo de separação dentro da lei?

- Não. Essa hipótese "não existe, de modo algum", assegura o constitucionalista Jorge Miranda, pois a Constituição assenta "no princípio da unidade do Estado". Vicente Jorge Silva desafiou há alguns anos Alberto João Jardim a convocar um referendo regional para que os madeirenses votassem a independência. Jardim recusou. Mas mesmo essa via se­ria ilegal. A possibilidade de referendos regionais está na Constituição desde 2004, mas a lei nunca foi feita. Além disso, mesmo havendo lei, o referendo teria de ser sempre convocado pelo Presidente da República, Aníbal Cavaco Silva. E há outro obstáculo insuperável, como aponta o constitucionalista Tiago Duarte: "São proibidos referendos cujo resultado implicasse uma alteração à Constituição (como seria o caso)." Conclusão: "Não existe nenhum modo constitucional de uma parte do território português se tornar independente." Jorge Miranda conclui que a única forma de chegar a uma eventual independência seria "pôr-se fora da lei, seria sempre uma insurreição". Uma revolta teria resultados imprevisíveis. Lisboa teria de decidir, politicamente, como agir face à região separatista: poderia fechar os olhos e aceitar, ou recusar e começar com sanções e acabar com o envio de tropas para sanar a revolta. De referir ainda que, de acordo com o artigo 165º do Código Penal, o "separatismo" é crime de alta traição (se praticado por quem exercer funções de soberania), punido com 10 a 20 anos de prisão.

- A Madeira seria um país europeu ou africano?

- Africano. A ilha situa-se na placa tectónica africana, e fica mais perto da costa africana do que da europeia. O geógrafo e investigador madeirense Raimundo Quintal explica que a Madeira "fica a sul da diretriz Açores-Gibraltar, que faz a separação entre as placas europeia e africana". Mas faz uma ressalva: "Culturalmente somos europeus”. Foi a localização em África que levou Muammar Kadhafi a defender na Assembleia geral da ONU, em Fevereiro de 1978, a independência da ilha, argumentando estar à mesma latitude de Casablanca, em Marrocos.

- A Madeira manter-se-ia na União Europeia automaticamente?

- Não. Nos tratados europeus não há normas que permitam enquadrar a questão e nunca uma situação semelhante se colocou, até agora (o referendo na Escócia poderá coloca-la), Miguel Poiares Maduro, especialista em Direito da União Europeia e antigo advogado no Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, prevê que, caso a indepen­dência acontecesse com o acordo de Portugal, a Madeira deixaria a UE e teria duas hipóteses: pedir a adesão ou discutir a possibilidade de uma associação com a UE como acontece com outros protetorados - mas neste caso manteria uma ligação a Portugal. Se a separação ocorresse em conflito, "a Madeira continuaria vinculada às regras da UE porque a sua independência não tinha sido reconhecida". E continuava a pertencer ofi­cialmente a Portugal. Francisco Pereira Coutinho, professor de Direito Internacional na Universidade Nova de Lisboa, acrescenta que a "manutenção da Madeira na UE depende­ria do consentimento por parte dos Estados-membros - seria, portanto, uma decisão política", e lembra que o Tratado da União obriga a que uma nova adesão seja aceite por unanimidade: Portugal teria de dar o seu acordo. A localização extraeuropeia não ajudaria, mas não seria um impedimento absoluto. Um dos pontos polémicos da candidatura turca à UE foi sempre o facto de ter um território quase totalmente asiático. Mas Chipre está na UE e fica no Médio Oriente/Ásia.

- Como seria o processo de reconhecimento internacional?

- A Madeira teria de corresponder aos oito critérios que definem um Estado de facto. À partida, cumpre as questões territoriais (tem fronteiras reconhecidas e pessoas que lá habitam regularmente), económicas (tem atividade económica organizada) e governativas (um governo que garante os serviços públicos, escolas e sistema de transportes). Mas haveria dúvidas sobre os dois últimos critérios: teria soberania e reconhecimento externo? Depende de como fosse feita a independência. Se a Madeira a declarasse de forma unilateral, seria difícil obter reconhecimento internacional, considera Poiares Maduro. Só o conseguiria se Portugal reconhecesse o novo país. O que levantaria também um problema económico: "Parece-me difícil que conseguisse manter boas relações económicas com Estados que são importantes para a sua viabilidade" sem esse reconhecimento.

- O que aconteceria aos edifícios do Estado português na Madeira?

- Ficariam para o Estado da Madeira. A Convenção de Viena sobre a Sucessão de Estados em Matéria de Bens, Arquivos e Dívidas, adotada em Viena, a 8 de Abril de 1983, refere que, nestes casos, salvo acordo entre os Estados ou decisão de uma entidade internacional competente, "a passagem de propriedade esta tal do Estado prede­cessor para o Estado sucessor tem lugar sem compensação", como aponta Francisco Pereira Coutinho, professor de Direito Internacional. Portugal não assinou esta con­venção, mas esta é a regra que tem vindo tendencialmente a ser seguida: sem contrapartidas. Poderiam ser convencionadas exceções, designadamente para a instalação da embaixada portuguesa na Madeira. O resto seria madeirense. Até a RTP M. Armando Marques Guedes, professor de Relações Internacionais na Universidade Nova de Lisboa, ressalva, contudo, que o "com ou sem contrapartidas" dependeria sempre das negociações, inclusive "soluções parciais e/ou temporárias" - como aconteceu, por exemplo, em Cahora-Bassa.

- Ronaldo passaria a jogar na seleção madeirense?

- Não. Ditam as regras que um atleta, depois de ter representado um país (Portugal), não poderá alinhar por outro. Se mantivesse nacionalidade portuguesa, ou dupla nacionalidade, poderia continuar a jogar por Portugal.

- O Marítimo e Nacional deixariam de competir na Liga Portuguesa?

- Não obrigatoriamente. Apesar de considerar que "há tanta probabilidade de deixarem a Liga como de um meteorito lhe cair em cima", o comentador Luís Freitas Lobo lembra que as equipas do Liechtenstein atuam no campeonato suíço e que o Mónaco joga em França. Não seria impossível Nacional e Marítimo continuarem no campeonato português apesar de a Madeira ser independente. Na hipótese de abandonarem a liga portuguesa, "os pontos dos jogos com essas equipas seriam eliminados".

- Os madeirenses poderiam optar pela nacionalidade madeirense, portuguesa ou pela dupla nacionalidade?

- Dependeria do que fosse convencionado entre os dois Estados, mas "seria pouco provável a opção livre dos madeirenses", explica Manuel de Almeida Ribeiro, professor de Direito Internacional no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas. E lembra um precedente que impôs restrições: "Quando se deu a descolonização, só conservaram a nacionalidade portuguesa os filhos e netos de portugueses nascidos no território de Portugal, ficando assim excluídos os nascidos nas ex-colónias sem essa ascendência." Mas há dúvidas. Francisco Pereira Coutinho considera que, como "a lei portuguesa não prevê casos de perda de nacionalidade por efeito de secessão territorial (a Constituição, no artigo 5º, também não o permite), mas autoriza situações de dupla nacionalidade, os nascidos ou residentes na Madeira manteriam a nacionalidade portuguesa se assim entendessem." E foi o que aconteceu no caso de Macau.

- A Madeira independente seria economicamente viável?

- "Sim, mas com um nível de vida muito mais baixo", resume o economista Miguel Beleza. A Madeira, aponta, tem "um défice externo corrente e uma dívida monumental e só pode manter essa situação se alguém lhe for emprestando o suficiente para tal". As alternativas "seriam ou produzir mais, o que a curto prazo é inviável, ou gastar bem menos - possível é, mas seria um ajustamento monumental". Carlos Pereira, economista e líder parlamentar do PS na Assembleia Regional, aponta um número: "Manter o nível de vida atual não se­ria possível, mas a Madeira seria viável desde que houvesse disponibilidade dos ma­deirenses em reduzir, pelo menos, 30% do seu bem-estar." É que neste momento essas 34% das receitas da região têm origem nas transferências do Estado (21%) e da União Europeia (13%) uma Madeira independente teria de encontrar formas de substituir no imediato essas verbas.

- Sem resgate financeiro português, com quem poderia a Madeira negociar ajuda para evitar o colapso?

- Com o FMI, por exemplo, mais rapidamente do que com a UE em relação à qual o estatuto concreto da Madeira demoraria mais a clarificar. Mas não é garantido. Miguel Beleza duvida dessa solução: “Num cenário de independência é muito improvável que alguém lhe emprestasse dinheiro sem garantias, porque a Madeira não é solvente”.

- A Madeira poderia continuar no euro ou teria uma moeda própria?

-Teria de passar pelos critérios de convergência, o que seria extraordinariamente difícil, tanto que nem estou a vê-los a inscreverem-se para o euro", aponta Miguel Beleza. Há um meio-termo que seria deixar o euro circular no território sem este pertencer à moeda única, tal como o dólar americano circula no Panamá, por exemplo. Ou, em alternativa, criar uma moeda própria. No Verão Quente de 1975, a Flama chegou a emitir zarcos que alguns estabelecimentos locais aceitavam e trocavam.

- Quanto baixava o PIB português?

- O PIB da Madeira é de 5,1 mil milhões de euros, o português é de 167,5 mil milhões de euros (2010). O PIB nacional perderia 2,9%.

- Os impostos teriam de aumentar muito para o valor do orçamento regional se manter?

- Sim E não chegariam. A média dos impostos madeirenses (nos últimos 12 anos) corresponde a 58% das necessidades orçamentais, A média das receitas fiscais dos últi­mos 10 anos foi de 650 milhões de euros/ano. A despesa média do orçamento regional é de 1.200 milhões de euros. Se subir impostos fosse o único recurso, mesmo um aumento brutal não chegaria: seria sempre preciso baixar a despesa e/ou pedir ajuda externa.

- Os madeirenses passariam a aprender História da Madeira em vez da História de Portugal?

- O professor de História Paulo Guinote considera que "não existem conteúdos suficientes para falar apenas na História" da região. Os manuais teriam de incluir a descoberta das ilhas ou como foram governadas durante a monarquia, questões ligadas a Portugal. Mas há duas abordagens possíveis, aponta: "a benigna", como no Brasil, onde se ensinam os cinco séculos da relação entre os dois países: ou a mais radical, como em Angola e Moçambique, onde depois da independência o capítulo da História de Portugal era curto: falava-se apenas do país colonizador e da luta pela independência.

- Que vantagens perderiam os estudantes madeirenses que quisessem estudar em Portugal?

- Hoje, os alunos madeirenses podem entrar no ensino superior no continente através do chamado "contingente da Madeira", que determina que 3,5% das vagas, em cada curso de cada universidade, sejam reservadas para estudantes madeirenses. E previsível que esse benefício desaparecesse.

- Como seriam a bandeira e o hino madeirense?

- Com grande probabilidade, manter-se-iam os actuais. A bandeira regional azul e amarela começou por ser usada pela Flama (Frente de Libertação do Arquipélago da Madeira), um movimento que surgiu no pós-25 de Abril, separatista – pelo que seria até adequada a uma Madeira independente. Jardim adoptou em 1978 a bandeira, que já estava pintada pelos independentistas em boa parte das paredes do Funchal, porque a Madeira não possui outra tradição heráldica alternativa. Apenas substituiu as quinas no centro do estandarte flamista pela cruz da Ordem de Cristo (com forte ligação histórica à ilha). O azul simboliza o mar e o céu, e o amarelo, o sol. São ícones apolíticos. Mas isso não o livrou de críticas. Um deputado da UDP, Paulo Martins, interpelou-o no parlamento regional: "Então por que raio é que o PPD propõe uma bandeira com as cores e a disposição exatamente iguais às da Flama?" É "a bandeira do terrorismo que o PPD parece querer pôr nos mastros do palácio de São Lourenço”. Já o atual hino, criado em 1980, não teve polémica: "Por esse mundo além,/ Madeira, honraremos tua História/Na senda do trabalho/Nós lutaremos/Alcançaremos/Teu bem-estar e Glória"

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