quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Responsabilidade Civil Internacional

Por Catarina Falcão, Jornal i, 15 de abril de 2013

Depois da Grécia apurar que a Alemanha lhe deve mais de 162 mil milhões de euros em reparações de guerra, o tom do diálogo começa a subir entre os dois países que já ponderam recorrer aos tribunais internacionais para resolver a disputa

Mais de 560 mil mortos, 70 mil judeus enviados para campos de concentração, 50% das infra-estruturas destruídas e 75% da indústria em ruídas foram o resultado de três anos de ocupação nazi na Grécia. Agora, 69 anos depois da saída das tropas de Hitler do país e na mesma semana em que consegue desbloquear a próxima tranche do empréstimo da troika, a Grécia mostra-se disposta a ir até às últimas consequências para que lhe sejam reavidos mais de 162 mil milhões de euros em reparações de guerra que nunca foram pagas na totalidade pela Alemanha - com juros de mora. Wolfgang Schäuble, ministro das Finanças alemão já acusou os gregos de irresponsabilidade por trazerem esse assunto de volta à discussão pública, mas Dimitris Avramopoulos, ministro dos Negócios Estrangeiros, avisou que Atenas não vai esquecer o passado e que serão, em última instância, os tribunais internacionais a decidir.

Depois do jornal diário grego “To Vima” ter difundido que a Comissão nomeada pelo governo grego em Novembro do ano passado para avaliar o montante de reparações de guerra em dívida pela Alemanha tinha apurado que o valor devido à Grécia era de cerca de 162 mil milhões de euros, as críticas germânicas não se fizeram esperar. Schäuble desvalorizou o assunto considerando as conclusões do relatório do governo “irresponsáveis”. “Em vez de iludir as pessoas na Grécia, seria melhor mostrar-lhes o caminho para as reformas que precisam fazer”, disse o ministro alemão.

A resposta da Grécia, onde o relatório ainda é secreto, conhecendo-se apenas o valor monetário apurado por um conjunto de analistas, não tardou. O ministro dos Negócios Estrangeiros que está a estudar o relatório e a melhor maneira de o utilizar, disse que as reformas para melhorar a situação financeira do país estão a ser levadas a cabo e que as reparações da II Guerra Mundial são um assunto à parte. “Não há qualquer relação entre os dois assuntos. Uma coisa são as reformas financeiras que a Grécia está a fazer neste momento e outra são as reparações de guerra. Este é um assunto pelo qual os sucessivos governos gregos se batem há muitos anos e caberá aos tribunais internacionais decidirem se o caso está ou não encerrado”, disse Avramopoulos.

ADVOGADO EM CAUSA PRÓPRIA Desde o início da crise, em 2010, muitas associações, cidadãos a título individual e políticos têm recuperado o tema da falta de pagamento por parte da Alemanha das reparações de guerra acordadas após o final da II Guerra Mundial, não só em resposta ao comando germânico das políticas de austeridade que têm sido impostas, mas também como uma possível solução para a falta de financiamento que a Grécia atravessa. A petição online para a Alemanha “honrar as suas obrigações para com a Grécia”, pagando os empréstimos e as reparações pelas “atrocidades cometidas durante a guerra” já conta com mais de 190 mil assinaturas.

Uma das vozes mais activas nesta reivindicação é Notis Marias, deputado eleito pelos Gregos Independentes e professor de Assuntos Europeus na Universidade de Creta. Ao i, o deputado grego explicou que, na sua opinião, o país “deve recorrer a todos os meios diplomáticos e legais, incluindo tribunais internacionais e outras organizações para reaver o dinheiro”. Uma alegação que segundo o professor de Direito Internacional do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP), Francisco Pereira Coutinho, pode ter viabilidade junto do Tribunal Internacional de Justiça. “É fundamentalmente um problema político, mas se a Alemanha não pagar, poderemos eventualmente ter um novo processo no Tribunal Internacional de Justiça (TIJ), agora iniciado pela Grécia, em que se discutirá se este pode apreciar factos que sejam anteriores à sua constituição e se a Grécia tem ou não direito a indemnização” explicou o académico ao i.

No ano passado, o TIJ declarou que a Alemanha não poderia ser responsabilizada em tribunais nacionais dos requerentes por falta de pagamento de reparações de guerra a título individual, depois do Supremo Tribunal Italiano ter decidido que a Alemanha tinha de compensar um italiano deportado em 1944. Após esta deliberação, um conjunto de cidadãos gregos, parentes das vítimas do massacre de Distomo - onde mais de 200 pessoas foram fuziladas pelas forças nazis - recorreu também aos tribunais italianos em busca da concretização da pena decretada pelos tribunais gregos, uma indemnização de quase 30 milhões de euros, que nunca foi executada. Para efectivar a sentença, o juiz italiano ordenou o confisco de bens alemães em solo italiano. A decisão do TIJ foi a de considerar que estas práticas violavam a imunidade jurisdicional alemã.

DÍVIDAS QUE PAGAM O FUTURO Mais do que um direito, muitos gregos acreditam que a Grécia da segunda metade do séc. XX e a do início do séc. XXI teria sido muito diferente caso a Alemanha tivesse pago as reparações devidas ao país. “Se a Alemanha tivesse pago, a Grécia teria tido a hipótese de reconstruir a sua economia e tornar-se um Estado mais competitivo no pós-Guerra”, disse ao i o deputado Notis Marias.

No fim de 1940, durante a ascensão pungente das Forças do Eixo, Mussolini está com dificuldades em invadir a Grécia, um país que aparentemente lhe traria uma vitória fácil e aumentaria o seu prestígio junto do seu aliado, Adolf Hitler. Durante seis meses as forças italianas tentaram em vão invadir o território helénico, sendo repetidamente repelidos pelas forças gregas. Em Março de 1941, um dos contra-ataques gregos, que fez os italianos baterem em retirada, foi considerada a primeira vitória terrestre dos Aliados na Segunda Guerra Mundial.

Com o crescente embaraço italiano, Hitler veio em auxílio dos italianos e atacou as linhas mais indefesas gregas e em menos de um mês as tropas nazis marcharam sobre Atenas. Foram três anos de domínio tripartido - Alemanha, Itália e Bulgária - que levaram à Grande Fome, no Inverno de 1941, onde morreram mais de 300 mil pessoas só nos arredores de Atenas. É aí que ocorrem os empréstimos forçados ao Terceiro Reich que enfraqueceram a moeda nacional (o dracma) e levaram a uma grande inflação, e aos massacres que dizimaram populações inteiras de vilas e aldeias. Segundo Marias, as forças nazis “devastaram as infra-estruturas existentes na altura, danificando a economia grega”.

Atenas foi libertada em Outubro de 1944 pelas forças soviéticas, mas seguiu--se uma guerra civil entre as várias forças envolvidas na resistência durante o período de ocupação. Nas Conferências de Paris em 1946 que marcaram oficialmente o fim da Segunda Guerra Mundial, a União Soviética arrecadou grande parte dos fundos das reparações alemãs por ter sido o país com maior número de vítimas mortais, mas também pelos danos infligidos no território russo. Aí ficou também assente que a Grécia receberia 4,5% das reparações materiais exigidas à Alemanha e 2,7% de outras indemnizações. Estes pagamentos acabaram por chegar através da maquinaria pesada de fabrico alemão utilizada para renovar a indústria do país e o pagamento de compensações monetárias a vítimas individuais dos crimes de guerra nazis. A Itália também pagou reparações de guerra à Grécia.

No entanto, uma das maiores reivindicações continua a ser o empréstimo forçado equivalente a mais de 10 mil milhões de euros (476 milhões de marcos do Terceiro Reich) desviado durante a guerra para financiar as tropas nazis e que nunca foi contabilizado nas reparações, o que com juros de quase 70 anos, somará uma grande parte dos 162 mil milhões apurados no relatório do governo.

PAGAR OU NÃO PAGAR Sete anos depois das Conferências de Paris e temendo as mesmas consequências do pagamento da dívida alemã no pós-Primeira Guerra Mundial (ver texto ao lado) que levaram à ascensão ao poder do partido Nazi em 1933, os credores da Alemanha - já República Federal da Alemanha - reuniram-se e amenizaram as condições de pagamento da dívida externa (também da I Guerra Mundial) e das reparações devidas aos vários países afectados pelo conflito.

Nos Acordos da dívida alemã que tiveram lugar em Londres ficou decidido que os pagamentos externos da Alemanha não excederiam os 5% das exportações e que uma parte da dívida seria paga após um tratado de paz entre as duas Alemanhas, o que veio a acontecer com a reunificação do país em 1990. Este acordo, juntamente com os fundos proveninente do plano Marshall, fez com que a República Federal da Alemanha se reerguesse em tempo recorde.

Para além da União Soviética, os grandes destinatários das compensações alemãs foram os sobreviventes judeus e as famílias das vítimas dos judeus mortos em campos de concentração. Na década de 90, mais de 100 mil pessoas em todo o mundo (especialmente em Israel e nos Estados Unidos) recebiam pensões do Estado alemão como reparações de guerra, directas ou indirectas.

No entanto, a Grécia alega que a Alemanha não acabou de pagar o que lhe devia, apesar de ter ratificado, juntamente com outros países, os Acordos da dívida em 1953.

ARGUMENTO DE PESO A Grécia nega que o relatório sobre as dívidas alemãs pedido em Novembro do ano passado pelo Ministério das Finanças a quatro investigadores, e que compilou informação patente em quase 200 mil documentos, vá servir de arma negocial com a troika, alegando que uma coisa é a actual situação financeira do país e outra são as reparações de guerra. “A troika e as ajudas financeiras não têm nada a ver com esta reclamação. Este assunto é estritamente bilateral e terá de ser resolvido entre a Grécia e a Alemanha”, assegurou Notis Marias ao i.

Seja como for, o primeiro-ministro Antonis Samaras, conta agora com um argumento de 162 mil milhões de euros para sensibilizar a Alemanha para a situação grega.

1 comentário:

  1. Fruto de acontecimentos recentes de cariz financeiro que redefiniram a geografia económica europeia, nomeadamente a recessão de 2008, Alemanha e Grécia ver-se-iam confrontadas com o renascimento de uma antiga disputa respeitante ao pagamento de indemnizações com fundamento nos danos causados ao Estado Grego durante o período de ocupação germânica, na 2ª Guerra Mundial.
    Os pressupostos internacionalmente reconhecidos para que estejamos perante uma situação em que possa ser aplicável o regime da responsabilidade civil internacional por factos ilícitos não parecem levantar questões de maior. Se foi notória a acção voluntária por parte do III Reich em ocupar o território grego com recurso à força (deste modo violando o direito internacional da época por infracção de normas de ius cogens), igualmente notórios foram os prejuízos, quer humanos quer materiais, que dessa mesma ocupação resultaram – estabelece-se assim o vínculo de causalidade entre ambas as pressuposições.
    Estão, com efeito, reunidas as condições para que possamos afirmar que estamos na presença de um dano directo causado pelo extinto III Reich a um Estado terceiro. Importa, antes de mais, estabelecer a distinção entre o que é o dano directo, isto é, aquele que deriva necessariamente de acto ilícito cometido por determinado sujeito internacional, de dano imediato, aquele cujas repercussões são automaticamente ressentidas por este. Se em relação às infraestruturas destruídas não há dúvida que é uma situação susceptível de classificação directa e imediata, no que diz respeito ao pagamento de indemnizações baseadas em ofensas à integridade humana, a questão levanta alguns problemas metodológicos de aplicação do direito internacional. Os sujeitos particulares individualmente considerados, não sendo eles sujeitos natos de direito internacional, apenas o poderão ser de forma mediata, segundo uma lógica ficcionada de que uma ofensa a um qualquer cidadão é, em primeira mão, uma ofensa ao direito juridicamente protegido do Estado. Esta orientação tem dado lugar, de resto, a uma jurisprudência constante das instâncias judiciais internacionais (Processo Mavrommatis de 30 de Agosto de 1924, Processo dos Empréstimos sérvios de 12 de Julho de 1929).
    Deixando o plano jurídico, não será irrelevante fazer referência às circunstâncias em que esta questão que opõe gregos e alemães se levanta. Numa altura em que existe uma forte pressão europeia, encabeçada pela Alemanha, para a consolidação das contas públicas gregas, a Grécia encontrou em factos passados contraposições que, a serem decididas pelo Tribunal Internacional de Justiça em seu favor, minoram a inércia ao cumprimento das suas obrigações actuais. Se o caso acabar por chegar à jurisdição internacional (não podendo nunca ser decidida no âmbito de direito estadual como demonstrou o acórdão Jurisdictional Immunities of the State de 23 de Dezembro de 2008), esta terá a tarefa complicada de dirimir um litígio em que ambas as partes rejeitam qualquer intenção de refrear as suas pretensões individuais que, ao que parece, se encontram devidamente fundamentadas de parte a parte.

    André Pinto, nº 003553

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